Carambolas-do-mar e a evolução dos animais: por que o genoma do Mnemiopsis leidyi balança o que sabe
Um artigo publicado recentemente na revista Science aponta que ao invés das esponjas, as carambolas-do-mar (filo Ctenophora) seriam os primeiros animais a seguir o seu próprio rumo na evolução, digamos, abandonando a linhagem do restante dos animais (esponjas, cnidários, placozoários e bilatérios (todos os animais que você conhece)) em uma linhagem ainda por se “especializar”. Para um leigo, ou mesmo para um biólogo acostumado a filogenias de grupos “mais importantes” o que acontece ali na base dos animais pode não parecer importante. Mas para nós evolucionistas que investigamos os organismos não bilatérios, esse achado é bastante provocador, para não dizer que sentimos, a priori, que ele é uma balela. Mas vamos com calma. Todo cientista deve ler, estudar e tentar entender o que está sendo apresentado, antes de agir com o coração. Como assim minhas esponjas não são mais os animais mais primitivos?
Para começar, por que esse trabalho causa desconforto? Esponjas são os animais mais simples existentes no planeta. Embora alguma discussão possa ser feita em torno de tecidos verdadeiros, gastrulação, polaridade, etc., fato é que as esponjas não apresentam um sistema digestivo especializado, nem outros órgãos e não apresentam sistema nervoso ou muscular. Logo, é fácil acreditarmos que elas seriam os animais mais primitivos. E é isso que tem se acreditado desde que elas foram reconhecidas como animais. E o que que um ctenóforo tem? Tem um sistema digestivo bem formado (eles são animais que predam outros animais planctônicos (aqueles que são microscópicos e vivem boiando na água)), tem! Tem sistema nervoso radial, como os cnidários(águas-vivas, anêmonas e corais), tem! E tem tecidos musculares como ninguém (ao som de Carmen Miranda, por favor).
O livro “Invertebrates” (Brusca & Brusca, 2003) fala, dentre outras, as principais características desses animais:
Metazoários diploblásticos (ou possivelmente triploblásticos) com ectoderme e endoderme separadas por um mesênquima celular;
Sem sistemas discretos como respiratório, excretório ou circulatório, exceto pelo digestivo;
Sistema nervoso na forma de uma rede nervosa ou de plexus, mas mais especializado do que aqueles dos cnidários;
Musculatura sempre formada por células verdadeiramente mesenquimais.
Por isso, é bem difícil aceitar que eles teriam vindo antes das esponjas! Mas onde estariam os ctenóforos na filogenia animal? Podemos dizer que tradicionalmente, esses animais são colocados junto com os cnidários em um grupo chamado Celenterados. Mas historicamente eles já foram o grupo-irmão de platelmintos(planárias, tênias, etc), dos bilatérios, de cnidários, etc. No material adicional do artigo publicado na Science, Ryan e colaboradores apresentam uma tabela indicando um bocado de posições que esse grupo já ocupou em toda a história dos estudos filogenéticos dos animais. O que concluímos com isso? A posição desses animais na filogenia dos metazoários ainda está longe de ser resolvida.
Existem argumentos que suportam os ctenóforos como mais basais(mais “primitivos”) que as esponjas? No artigo, Ryan e cols. apresentam uma série de argumentos que permitiriam sustentar essa hipótese. Em 2012, assisti uma palestra do Dr. Mark Martindale (especialista no desenvolvimento de vários invertebrados, e sem dúvidas um dos pesquisadores que mais entende do desenvolvimento de ctenóforos) na qual ele mostrava que as características mais derivadas das carambolas-do-mar (sistema nervoso, muscular, etc) seriam análogas e não homólogas àquelas encontradas nos animais mais derivados (principalmente os bilatérios triploblásticos). Martindale nos perguntou o por que de aceitarmos que um órgão tão complexo quanto os olhos poderia ter evoluído independentemente algumas vezes na evolução dos animais, mas por que éramos tão resistentes ao fato de células musculares e nervosas não poderem ter surgido mais de uma vez na evolução destes organismos. Ademais, ele mostrou, assim como Ryan e cols. (Martindale é um destes colaboradores) no artigo do genoma da carambola-do-mar, que o desenvolvimento de músculos e de outras características derivadas dos ctenóforos dependem de genes diferentes daqueles envolvidos no desenvolvimento dessas mesmas estruturas nos bilatérios. Ou seja, aparentemente, as características que indicavam que os ctenóforos seriam os animais mais próximos dos bilatérios (músculos “mesodérmicos”, simetria, sistema nervoso) seriam análogas e não homólogas.
Ao aceitarmos essa hipótese, chegamos a uma grande questão. Se os ctenóforos são os mais basais e possuem todas essas características, por que as esponjas são tão... SIMPLES? Esse blog é pra falar sobre ciências de esponjas, então por favor fale sobre elas!!! A simplificação do plano corporal não é novidade na zoologia. Existem inúmeros relatos de simplificação em animais que se tornaram parasitas, por exemplo. Ao adotarem um hábito sedentário, as esponjas já não precisariam de músculos. Ao se tornarem filtradoras de pequenas partículas, já não precisariam de um sistema digestivo. Talvez assim poderíamos aceitar essas simplificações. E o que dizer do sistema nervoso? O sistema nervoso dos ctenóforos contém estruturas bem diferentes do que é observado em cnidários e outros bilatérios, mas as esponjas e ctenóforos apresentam um conjunto de genes muito parecidos para a transmissão de informações nervosas.
E tem mais... nós sabemos muito pouco sobre a biologia das esponjas. Nas últimas décadas o conhecimento sobre esses animais tem aumentado bastante. O genoma da Amphimedon compressa, por exemplo, mostrou que elas tem um genoma constitutivamente e organizacionalmente similar ao dos demais metazoários. Diversos estudos de biologia do desenvolvimento tem indicado que as esponjas apresentam as principais vias de sinalização envolvidas com a padronização do corpo dos animais. Mesmo a ausência de tecidos, algo que sempre caracterizou as esponjas, tem sido questionada regularmente tanto em estudos morfológicos quanto moleculares. Ou seja, sabemos tão pouco sobre esses “aparentemente simples” animais que não será assim tão surpreendente que elas não sejam tão simples.
Então devemos aceitar que as esponjas são mais derivadas que os ctenóforos? Não. A resposta ainda não pode ser dada. Muitos outros artigos, e mesmo outras análises apresentadas no artigo de Ryan e cols., indicam as esponjas como os animais mais basais. Por outro lado, se os ctenóforos não são mais basais que as esponjas, a posição deles na filogenia dos animais está longe de ser resolvida. Aceitarmos que eles seriam “celenterados” ou grupo irmão de bilatérios seria tão insensato quanto aceitarmos que eles são os mais basais? Vivemos um momento bastante excitante de debate na zoologia. Não penso que seria errado comparar o que estamos passando agora com o período das teorias de Haeckel sobre a evolução dos animais no final do século XIX. Novas ferramentas + novas tecnologias + novos pensamentos = avanço científico. Vejo que temos nas próximas décadas um campo repleto de oportunidades para quem trabalha com organismos basais. Para concluir, estou com Dohrmann e Wohreide (2013): ainda é cedo para mudarmos os livros-texto e pensar que aquilo que tem sido repetido nos últimos 20-30 anos deveria ser abandonado.
(Foto retirada de Ryan et al. 2013)